Por que é tão difícil para um magrelo ganhar peso?
Em outras palavras, a cobaia desse estudo - para facilitar nossa vida vamos chamá-lo de Kael - acreditava ter algum tipo de proteção contra o ganho de peso.
Tenho certeza que todo mundo conhece alguém como Kael, aquele tipo de pessoa que come de tudo e não engorda - famoso(a) “perna oca”. Se você está lendo esse artigo aqui neste blog, talvez você mesmo(a) seja essa pessoa.
Nós, magrelos, provavelmente nos identificamos com Kael.
Popularmente, esse tipo é chamado de “magro de ruim”. Magros de ruim nem sempre são super magrelos, mas sempre são conhecidos por sua dificuldade de ganhar peso.
Os cientistas, por sua vez, preferem chamá-los de “constitucionalmente magros” ou de “resistentes ao ganho de peso”.
Enfim, por duas semanas, Wiley e Newburgh alimentaram Kael vigorosamente. Os resultados disso (logo abaixo) vão lhe surpreender.
Será que Kael não engordou nem um quilinho mesmo?
E será que nós realmente não conseguimos ganhar peso? Que, de alguma forma, temos uma “resistência” contra isso?
Vamos descobrir...
Ao contrário da maioria, magros de ruim querem ganhar peso
Os atuais padrões de beleza nos impõem corpos fortes e musculosos. Até para as mulheres, foi-se o tempo em que um corpo magérrimo (estilo modelo de passarela) era considerado o “padrão ideal”.
Por isso, atualmente, a maioria dos magrelos e magrelas QUER ganhar peso. E todos sabem que para isso precisamos comer mais. De fato, a maioria dos magrelos nessa situação estão tentando ativamente comer mais e ganhar peso.
Então, como é possível que mesmo comendo normalmente - e, às vezes, até demais - não ganhemos peso?
Magros de Ruim na ciência
Magrelos do tipo “magro de ruim” estão documentados pela ciência há décadas. Somos o oposto das pessoas com tendência à obesidade.
Vários estudos testaram engordar as pessoas de propósito ao longo dos anos, só para entender os efeitos de se comer demais. Como esperado, a maioria das pessoas engorda de maneira proporcional à quantidade de calorias ingerida; mas nem todos.
Num estudo de 2014, mulheres magrelas (ou “constitucionalmente magras”, como chamadas no estudo) não conseguiram ganhar peso algum ao longo de 4 semanas comendo um superávit calórico de 630 kcal por dia. Em 2012, o mesmo grupo de pesquisadores já tinha falhado em outra tentativa de fazer um grupo de 10 magrelas ganhar peso comendo 700 kcal extras por dia durante um mês.
Então é isso? Realmente não ganhamos nenhum peso?
Calma! Há controvérsias.
Naquele estudo de 1931 citado na introdução deste artigo, Wiley e Newburgh fizeram sua cobaia magrela, Kael, ingerir 5000 kcal por dia ao longo de 15 dias. Isso foi o equivalente a cerca de 2000 kcal extras por dia, já que para manter seu peso estável Kael precisava comer “apenas” 3000 kcal/dia. Em 2 semanas, ele ganhou 4,5kg, o que ficou de acordo com o esperado pelos cálculos dos cientistas - e com a 1ª lei da termodinâmica.
Então, isso significa que ganhamos peso normalmente?!?
Calma pequeno grilo, vamos ver o que acontece quando fazemos isso por um prazo mais longo - mais de 2 semanas ou de um mês.
Em um famoso estudo feito na prisão de Vermont/EUA, com duração de aproximadamente 200 dias, os cientistas recrutaram alguns presos magros e tentaram fazê-los ganhar cerca de 25% de seu peso inicial. Ao longo do estudo, eles esbarraram em um problema: alguns prisioneiros simplesmente não conseguiam atingir a meta. Dois deles travaram aos 21%; outro não conseguiu passar de jeito nenhum dos 18%, mesmo comendo aproximadamente 10.000 kcal por dia.
Sobre esse estudo, o autor Ethan Sims descreveu em um artigo posterior:
“Nem todos os sujeitos tiveram tanto sucesso no ganho de peso. Alguns atingiram o objetivo com dificuldade, e alguns falharam em ganhar [peso] ainda que eles estivessem consumindo mais calorias do que outros que ganharam prontamente”.
Ainda por cima, ao término do estudo todos os prisioneiros participantes (exceto 2) perderam facilmente todo ou quase todo o peso ganho, voltando ao seu peso inicial.
Em outro famoso estudo com gêmeos idênticos (todos magros) publicado na década de 90, apesar de todos indivíduos comerem um superávit de 1000 kcal por dia durante 84 dias, um voluntário ganhou 4,3kg enquanto outro ganhou 13,3kg, ou seja, cerca de 3,1 vezes mais.
Já em 2019, em um estudo que durou 42 dias em uma “dieta de engorde” (cerca de 1300kcal extras por dia), o sujeito que menos ganhou peso aumentou somente 1,5kg, enquanto o que mais ganhou peso aumentou 3,4 vezes mais, ou 5,1kg.
Em outro estudo (Levine, 1999) essa diferença foi ainda maior - de 5,1 vezes - com o menor ganho de peso sendo 1,4kg e o maior 7,2kg. A diferença no acúmulo de gordura foi mais do que o dobro disso (11,5 vezes), com o menor ganho de gordura sendo apenas 360g e o maior ganho equivalente a 4,23kg.
Como podemos notar, mesmo entre pessoas magras há grandes diferenças no ganho de peso. Existem aquelas que são apenas magras, aquelas que são magrelas e aquelas que são magras de ruim. Ou seja, realmente existem pessoas que sofrem mais para ganhar peso. Então, não é que não consigamos ganhar peso, mas que isso é mais difícil para alguns...com certeza é.
Se você quiser ver algo parecido “na prática”, recomendo o documentário “Por que as pessoas magras não são gordas?”.
Então, o que faz com que para alguns ganhar peso seja um trabalho tão difícil, mesmo fazendo a mesma coisa que as outras pessoas? Existem algumas possíveis razões para isso.
O Mistério do Sumiço das Calorias: Para onde vai tudo o que comemos?
Pois bem, meu caro Watson. Se em todos esses estudos as pessoas comeram a mesma coisa e ganharam peso de forma diferente, o que aconteceu com o restante das calorias ingeridas? Será que magros de ruim desafiam a 1ª lei da termodinâmica? Será que a lei universal da conservação de energia não se aplica aos magros de ruim?
Como diria Sherlock Holmes: “Não há nada mais enganador que um fato óbvio”.
Como investigado por vários cientistas ao longo do tempo, abaixo estão os prováveis candidatos que explicam por que temos tanta dificuldade de ganhar peso. Vamos conhecer os principais suspeitos:
1. Genética
Naquele mesmo estudo com gêmeos idênticos que apresentou uma variação de 3 vezes entre o menor e maior ganho de peso, os autores também notaram que pares de gêmeos ganhavam peso de forma similar - se um dos irmãos engordava pouco, o outro também tendia a engordar pouco e vice-versa. Essa mesma semelhança foi encontrada para composição corporal, distribuição de gordura subcutânea e gordura visceral abdominal.
A conclusão deles foi de que existem fortes fatores genéticos que determinam quão facilmente ou dificilmente uma pessoa tende a ganhar peso/gordura.
Um dos genes que pode estar envolvido nessa resistência ao ganho de peso chama-se ALK. A deficiência ou falta desse gene em roedores, faz com que os ratos sejam magros mesmo tendo livre acesso a comida.
Em humanos, variantes genéticas do gene ALK foram associadas à magreza, mas os estudos ainda não são conclusivos.
De fato, as pesquisas sugerem que a magreza constitucional (assim como a obesidade) é, em grande parte, genética, sendo que vários genes parecem ser responsáveis por isso.
Mesmo assim, isso ainda não explica como as calorias extras “somem” (ou são gastas). Ou como diz aquela frase:
“A genética carrega a arma, o ambiente (estilo de vida / atitude) puxa o gatilho”.
2. Erro de cálculo
Alguns especialistas acreditam que nós estamos superestimando o quanto comemos. Isto é, não estamos comendo tanto quanto achamos. Isso certamente pode acontecer.
Muitos estudos em que magrelos não ganharam peso foram feitos com pouco (ou muito pouco) controle. Pessoas vivendo normalmente, que só precisavam adicionar uma refeição ou um suplemento extra em sua rotina normal para “garantir” seu superávit calórico - como os dois primeiros estudos citados no capítulo anterior, onde as magrelas não ganharam nenhum peso.
O problema disso é que mudar/adicionar uma refeição, muitas vezes, altera o que acontece na(s) próxima(s), reduzindo a quantidade ingerida espontaneamente.
Principalmente no caso de magrelos, que não costumam ter apetites vorazes.
3. Apetites tímidos
Desinteresse por comida, um apetite tímido e uma falta de preocupação alimentar são características comuns em magrelos.
Maioresníveis de PYY (peptídeo YY) e GLP-1 (hormônios intestinais que inibem o apetite) e menores níveis de grelina (o hormônio da fome) derrubam nosso apetite lá no chão. E isso acontece quer a gente coma demais ou não. Não temos tanta fome ou interesse por comida quanto nosso amigos não-magrelos.
Não é incomum nos esquecermos de comer. Antigamente, antes de ter formado os hábitos que possuo hoje em dia, eu frequentemente esquecia. Podia passar horas sem comer nada entre as refeições; e quando me dava conta já tinha passado do horário da próxima refeição.
Essa queda no apetite também acontece após o exercício. Enquanto muita gente relata que o exercício aumenta a fome, em magrelos, o exercício parece nos fazer comer menos - mesmo que nos forcemos a ingerir uma refeição ou suplemento pós-treino.
Isso pode ajudar a explicar porque alguns magrelos e magros de ruim naturalmente não comem muito. Logo, pode explicar também nossa dificuldade em ganhar peso.
4. Estômagos pequenos
Às vezes, não é porque não queremos comer mais, mas simplesmente porque não conseguimos mesmo.
Um estudo descobriu que algumas pessoas podem ter estômagos até 3 vezes menores do que outras. É fácil imaginar como isso pode dificultar o ganho de peso, caso sejamos uma dessas pessoas que têm estômagos menores.
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Fonte: A Study of Variations of the Stomach in Adults and Growth of the Fetal Stomach |
O que é mais interessante ainda sobre nosso estômago é que ele parece ser bastante adaptável. Se comermos apenas refeições pequenas ele pode diminuir (em até 36% segundo esse estudo). Por outro lado, se conseguirmos nos acostumar a comer (gradualmente, de preferência) grandes refeições, aparentemente podemos aumentar nossa capacidade gástrica.
Eu tenho certeza que hoje em dia a capacidade do meu estômago é bem maior do que quando eu comecei a tentar ganhar massa lá na minha adolescência. E eu também noto que ela diminui um pouco após um cutting.
5. Metabolismos acelerados
Outro motivo que pode explicar o sumiço das calorias é nosso metabolismo; isto é, o quanto de energia (calorias) gastamos ao longo do dia.
Magrelos (ou indivíduos constitucionalmente magros) gastam mais calorias por kg quando comparado a pessoas de peso normal.
Nosso metabolismo basal ou de repouso (i.e. fazendo nada) pode ser maior do que o esperado para nosso peso. Temos um formato corporal propício para a perda de calor - e o calor é um subproduto da queima de energia em nosso corpo.
Com membros longos e corpos delgados, nosso corpo possui uma maior área de superfície externa comparado a nossa área interna, o que propicia uma maior perda de calor. Além disso, ter menos gordura corporal significa menos isolamento térmico, nos levando a perder ainda mais energia em forma de calor.
Uma explicação para isso pode estar relacionada com “ciclos fúteis” de geração de energia lá dentro de nossas células, nas mitocôndrias. Esse processo ineficiente gera menos energia útil (ATP) ao nosso corpo e causa maior perda de calor do que o esperado.
6. Atividade Física Espontânea
Outro grande candidato para explicar a diferença no ganho de peso é uma maior ativação da AFE - Atividade Física Espontânea.
Como se já não bastasse uma maior chance de gastar mais calorias em repouso, ainda há grande probabilidade de “desperdiçarmos” boa parte das calorias extras que ingerimos através do movimento.
O gasto via AFE se refere ao gasto calórico com qualquer tipo de movimento que fazemos que não sejam exercícios, tanto de forma voluntária (atividades da vida diária) quanto involuntária.
Se movimentar mais, adotar posturas estranhas, ficar mais inquieto (balançando as pernas, batucando as mãos), são algumas formas que esse gasto com AFE se manifesta involuntariamente. Na maioria das vezes nem notamos isso.
Segundo um estudo, o gasto com AFE pode explicar até 69% da dissipação da energia extra consumida – ou seja, nosso corpo acaba torrando uns 70% das calorias que sobram. Pessoas que falham em ativar essa AFE após comer demais estocam uma maior proporção de calorias na forma de gordura.
Nós, magrelos, por outro lado, fazemos grande parte dessas calorias desaparecerem.
Esses dados sugerem que a AFE é, provavelmente, o maior dos nossos suspeitos. Mas eu ainda não descartaria os outros.
7. Psicologia
Nós não poderíamos deixar de falar da psicologia do ganho de peso/gordura. Ser magro/magra é parte da nossa identidade. É quem nós somos...e mudar nossa identidade nunca é fácil.
Nós podemos até querer ganhar peso e mudar quem somos para nos aproximarmos de um padrão. Mas nossa cabeça ainda se preocupa que isso nos leve a perder nossa identidade.
"Eu quero ganhar peso, mas..."
“e se eu realmente ficar obeso(a)?”;
“e se eu não conseguir me controlar depois disso e for tudo por água abaixo?”;
“e se eu me arrepender?”;
“e se eu não conseguir mais emagrecer e ficar flácida(o) para sempre depois?”;
“e se eu tiver que comprar todas minhas roupas novas e maiores?”
Não sabemos como vamos ficar depois de ganharmos peso. São muitos “e se” para se preocupar. E essas preocupações e inseguranças, ainda que inconscientemente, podem acabar minando nossas chances de sucesso.
“Arthur, eu me identifiquei com vários pontos da lista acima. Acho que existe mais de um suspeito responsável por minha dificuldade de ganhar peso”.
Elementar, meu caro Watson. Eu também não acredito que toda a dificuldade de ganhar peso dos magros de ruim possa ser atribuída a um único suspeito da lista.
Mas ainda que não identifiquemos exatamente o responsável (ou o principal deles), vamos ver o que podemos fazer quanto a isso.
Como ganhar peso sendo um magro de ruim
Como vimos, ganhar peso não é algo impossível para magros de ruim, só é mais difícil. O problema é que não queremos apenas ganhar peso. Na maioria das vezes, nós queremos é ganhar músculos; e nós precisamos fazer as coisas certas que vão nos conduzir a esse resultado.
O primeiro passo é treinar com pesos. Existem várias formas diferentes de fazer isso – desde treinos com alta demanda aeróbica, como o Crossfit, até os mais voltados para desenvolvimento de força máxima, como o Levantamento de Peso ou o Powerlifting. Esses treinos não são ruins. Mas para nós, que queremos construir músculos da forma mais eficiente possível, o ideal é um treino de hipertrofia - de musculação.
O próximo passo é seguir uma dieta de bulking farta. Não uma dessas dietas da moda, que as pessoas usam para emagrecer, como low-carb ou carnívora. Na verdade, para nós magrelos, é melhor deixar de seguir a maioria das dicas fitness que existem por aí, já que grande parte delas é direcionada para pessoas que querem emagrecer.
Nós precisamos encher nossos pratos com carnes, ovos, leite, iogurtes e proteínas de boa qualidade; com batatas, aipim, arroz (branco mesmo), pães, aveia, granola, frutas secas e outros carboidratos fáceis de digerir; azeite de oliva, abacate, castanhas, nozes, manteiga de amendoim e outras gorduras saudáveis; e muitas frutas e vegetais que vão garantir a ingestão dos micronutrientes que precisamos para a construção de músculos e manutenção de uma boa saúde. Isso não é tudo o que vamos comer, apenas uns 70-80%. No resto do tempo, podemos comer “o que quisermos”, já que não engordamos com facilidade mesmo.
Como vimos, magros de ruim queimam boa parte das calorias desnecessárias que sobram da alimentação via AFE. Mas se nós estivermos sinalizando para nosso corpo através do treino de hipertrofia que ganhar músculos é uma grande prioridade, essas calorias não estarão mais sobrando; agora elas serão necessárias para a recuperação e o crescimento muscular.
E esse ganho de músculo pode vir até a melhorar seu apetite ao longo do tempo, já que agora seu corpo vai demandar mais calorias para mantê-lo. Isso também é verdade para a capacidade do estômago, que vai se ajustando à medida que vamos comendo gradualmente refeições maiores. Ambos devem aumentar junto com seu peso e crescer junto com seus músculos.
Fazendo isso com consistência, monitorando sua evolução e ajustando seu treino e dieta sempre que necessário, temos tudo o que precisamos para seguir na direção correta, ganhando peso e músculos.
Nós também não devemos nos preocupar de que ganhar peso vá jogar nossa magreza natural pelo ralo. Isso não é algo que deve abalar nosso psicológico. Somos magros de ruim, mesmo que ganhemos um pouco de gordura, emagrecemos facilmente.
No estudo da prisão de Vermont, quase todos os presos voltaram ao peso inicial sem nem mesmo tentar. No documentário “Por que as pessoas magras não são gordas” um mês depois do experimento a maioria dos voluntários já havia perdido todo ou quase todo o peso ganho; uma delas relatou: "...eu nem fiz nada para tentar perder o peso...". Na verdade, em quase todo estudo em que houve, após o final, algum tipo de acompanhamento de pessoas constitucionalmente magras que ganharam peso, elas perderam tudo ou quase tudo o que ganharam.
Isso não significa que nós vamos perder todos os músculos que ganharmos também, já que nós vamos nos esforçar para manter os novos hábitos adquiridos durante o ganho de massa.
Você pode até continuar sendo um magro de ruim - no sentido de que pode comer de tudo e não engordar -, mas você não precisa ser um magrelo para sempre.
Na verdade, eu tenho certeza que se você aprender a fazer tudo isso, você não vai ser um magrelo para sempre. Você pode conquistar um corpo sarado, musculoso e saudável.
E mesmo depois, você quase nunca vai precisar se preocupar em comer demais, engordar muito ou em ter que cuidar o que come; isso não nos pertence, afinal somos magros de ruim. Temos coisa melhor para nos preocupar.
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